"Quid Rides? De te fabula narratur." Horácio.

sábado, outubro 29, 2005

Mesa de Cabeceira

Brokeback


Com a honrosa excepção do The Queen is Dead dos Smiths, que ouvi pela primeira vez na casa de um primo, tenho uma incapacidade inata de me lembrar do momento ou local onde ouvi pela primeira vez uma música e pior ainda quando se trata de associar uma canção a uma determinada situação.
Com os livros já não é assim. O To the Lightouse de Virginia Woolf, por exemplo, é uma tarde de ressaca colossal na praia de Odeceixe numas férias de latas de atum ao jantar para poupar dinheiro para copos mais tarde.

Normalmente, lembro-me também de, pelo menos, uma frase: as últimas de To The Lighthouse e de O Primo Basílio com Mrs Ramsay pensando "I have had my vision" antes de um mergulho para acordar ou o "Podia ter trazido a Alphonsine!" lido já de pé para sair do metro na Rotunda. Outras vezes, fica só o momento em que li o livro: Gli Indifferenti a caminho de Cádiz num comboio péssimo, Brideshead Revisited na esplanada em Monte Gordo seguido do For Whom the Bells Toll na altura em que as férias duravam um mês e não havia mesmo mais nada para fazer. Outros têm a honra de já terem voltado várias vezes à mochila de onde saíram. A minha cópia do Memorial do Convento já foi a Santarém, a Roma e a Bruxelas, mas é essa a única coisa que recordo, isso e que nunca passei da página trinta.
Vem isto a propósito de Brokeback Mountain de Annie Proulx, originalmente um conto de Close Range: Wyoming Stories, agora publicado autonomamente devido ao filme de Ang Lee que aí vem e que alguns felizardos já viram, e premiaram, em Veneza.

Se Yeats defendia que só o sexo e a morte eram dignos de serem considerados pelos adultos, Brokeback Mountain nas suas cinquenta e poucas páginas qualifica-se com distinção. A história centra-se num amor morto à partida entre dois cowboys nas montanhas do Wyoming e se o cenário de trailer parks, latas de feijão comidas com garfos sujos e empurradas com whiskey é pouco romântico, as parcas e rudes frases dos personagens são-no ainda menos:
"When we split up after we got paid out I had gut cramps so bad I pulled over and tried to puke, thought I ate somethin bad at that place in Dubois. Took me about a year a figure out it was that I shouldn't a let you out a my sights."
Mas trata-se, ainda assim, de um livro sobre amor. Um amor recompensado com cabeças abertas à pancada na América rural e, por isso mesmo, um amor negado ("I'm not no queer"), receado, ("It scares the piss out of me"), irresistível ("I wish I knew how to quit you.") e inevitavelmente condenado:
"We got us a fucking situation here. Got a figure out what to do."
"I doubt there's nothin now we can do".
É sobretudo uma história sobre as barreiras (intransponíveis ?) que separam as pessoas: os cowboys um do outro, das respectivas mulheres e filhos ou dos pais.Fico a aguardar pelo filme, com a angústia habitual quando já li o livro.
Para mim, Brokeback Mountain vai ser sempre a praia de San Diego e o mote de Ennis "if you can't fix it, you've got to stand it".