A Norma
Num e-mail de desespero de cidadania, referindo-se ao novo aeroporto, pergunta um amigo se achamos "normal" que o Governo esbanje dinheiro desta forma numa obra inútil.
Numa perspectiva em que a normalidade seja a "norma", a ocorrência mais frequente de entre as várias possíveis, infelizmente, acho perfeitamente normal. A classe política nacional obviamente nunca estudou avaliação de projectos e os cidadãos-accionistas destes empreendimentos sempre permitiram o esbanjamento dos seus recursos. Tudo normal, portanto.
Mas creio que o "normal" do meu amigo se refere à norma não enquanto ocorrência mais frequente, mas sim como a mais racional e fundamentada. Neste caso, trata-se de uma anormalidade total.
Os argumentos para a construção do novo aeroporto só têm duas justificações: a ignorância e o provincianismo.
Atente-se, por exemplo, no argumento de que o aeroporto de Lisboa está dentro da área urbana, representando, por isso, um risco acrescido. Basta olhar para vários exemplos de outros aeroportos internacionais para perceber que a probabilidade de um avião em Lisboa atingir a Faculdade de Ciências é igual à da rainha de Inglaterra acordar com um Boeing a caminho de Gatwick nos jardins de Windsor. Já para não falar nas razias à torre do Bank of America necessárias para aterrar em San Diego, de aterrar nas praias de Santa Monica em LAX ou em São Francisco que consegue o prodígio de ter um aeroporto em cada lado da Bay Bridge. Além do mais, o aeroporto em si cria uma área urbana à sua volta. O Concorde em Charles de Gaulle aterrou num hotel; em Schiphol, Bruxelas, Frankfurt, Seattle ou Atlanta aos aeroportos seguiram-se hotéis, empresas de catering e manutenção, Business Parks e construtores civis a erguerem casas nas redondezas para toda a gente que lá tem de trabalhar. A Ota cheira-me mais a uma espécie de Malpensa que, embora tenha custado uma fortuna, fica tão longe que todas as linhas aéreas mantêm voos para Linate que, mesmo decrépito, nunca chegou a fechar.
O outro argumento, francamente o mais hilariante dos últimos tempos, é o da saturação do aeroporto de Lisboa. Segundo a ANA, em 2004, passaram por Lisboa cerca de 10 milhões de passageiros. Muitos? Um terço dos que passaram por Filadélfia, que é o 30º aeroporto no ranking mundial do ACI. Para pôr em perspectiva, trata-se aproximadamente do mesmo que em Praga e que, com um crescimento altamente irrealista de 5% ao ano, nos levaria aos níveis de Estocolmo Arlanda na altura da abertura do aeroporto. Que define então a saturação que justifica a Ota? Para a FAA, a saturação consiste nos atrasos superiores a 15 minutos causados por motivos operacionais de um aeroporto - por exemplo, a taxa para Newark, um dos mais saturados, é de 80%. A de Lisboa ainda ninguém a viu, mas tendo em conta que o pico de aterragens/descolagens registado em 2004 numa única hora e durante o Euro foi de 39, se andar nos 5% é muito. Mas mesmo que fosse mais alta, não justificaria a construção de um novo aeroporto. Em Newark, o objectivo é o de aumentar a eficiência das operações para reduzir esta taxa e, em Lisboa, as oportunidades para o fazer abundam ainda que nalguns casos envolvam alterações ao aeroporto. Um exemplo claro é o número insuficiente de mangas para embarque/desembarque que reduziriam o tempo gasto hoje em dia nesses processos através dos autocarros. Outro seria a construção de mangas para os aviões de maior porte, tudo exequível na área hoje ocupada.
Finalmente, entra o desígnio nacional como argumento de desespero. O aeroporto não é de Lisboa é do país. Eu peço imensa desculpa ao resto do país, mas o aeroporto é de Lisboa mesmo porque é Lisboa a origem e o destino da grande maioria dos passageiros. O que sofrem os portuenses em transferências quando não há voos directos, também o sofrem os lisboetas para vários destinos em que têm de ir a Paris, Londres ou Frankfurt fazer ligações e deve-se a uma regra económica simples de oferta e procura. Se a procura não é suficiente nalgumas origens, juntam-se as procuras de várias origens para um mesmo destino para ter oferta. E isto relaciona-se também com a falácia da saturação. Sendo em Lisboa que se fazem as ligações, um aumento geral do tráfego aéreo em Portugal vai baixar parte da procura em Lisboa devido à abertura de ligações directas a partir de outros aeroportos do país.
No entanto, a razão principal para este novo aeroporto é o provincianismo. Os nossos ministros são parolos e como todo o bom parolo querem exibir algo novo e reluzente para mostrar o seu valor. Não importa que seja inútil, tem é de ser dourado. Infelizmente, isto é muito normal.
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