"Quid Rides? De te fabula narratur." Horácio.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Leis a Mais

Boda


Neste texto do Sobre o Tempo que Passa, descoberto via Blasfémias)argumenta-se esta coisa extraordinária, defendendo-se ao mesmo tempo uma pretensa visão liberal:
"O(a)s "gays" e a(o)s "lesbians" têm o direito tanto à intimidade da vida privada, como até a um certo grau de protecção pública. Não podem é chamar-lhe o que tem o nome de coisas de outra área. Por exemplo a instituição civil de origem canónica chamada casamento. Não me repugna, pois, o tratamento protectivo e legalizado das uniões entre gentes de hábitos sexuais diferentes dos meus."
A instituição civil de origem canónica, note-se bem. O argumento parece ser que o casamento foi criado pela Igreja e, como tal, embora a sociedade laica e civil se tenha dele apropriado, este tem de continuar a reger-se pelos cânones da Igreja. Ou seja, embora seja civil, a sua origem legitima a discriminação no seu acesso. Nem sequer entrando na discussão da eventual origem do casamento - como liberal ateu que sou quero distância igual de todas as religiões, de preferência muita - vejamos só a parte legal da questão (a única em causa).
O Código Civil, de forma ERRADA num Estado pretensamente laico, distingue (artº 1587) dois tipos de casamento: o civil e o católico. Note-se que não é o civil e o religioso, mas sim o católico num claro e inaceitável benefício de uma religião sobre as outras. Mas não é isso que está - directamente - em causa: existe um casamento civil e outro católico. O católico é problema dos católicos e eles que se entendam. Se quiserem só permitir o casamento de virgens certificadas, obrigar os noivos a jejuar durante seis meses, ou outra exigência qualquer é problema dos católicos que, como cidadãos livres que são, escolherão submeter-se ou não a essas regras. Há grupos de gays e lésbicas que lutam pelo reconhecimento das suas igrejas: isso é problema deles e das respectivas igrejas.
Já o reconhecimento perante a lei é problema de todos nós. No princípio de igualdade, consagrado constitucionalmente, todos os cidadãos têm de ter acesso ao casamento - como ao resto - em condições iguais. Já o Código Civil estabelece impedimentos aplicáveis a todos os que queiram casar (católicos, ortodoxos, ateus) com excepção de um impedimento inserido na altura da aprovação da Lei das Uniões de Facto que deu um novo texto ao artigo 1577 acrescentando a parte a negrito:

Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir familía mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código.

O efeito óbvio deste "de sexo diferente" é o impedimento de uma parte da população do acesso a uma relação jurídica (é disso que se trata numa sociedade laica e é assim que o Código Civil a define). Não só é discriminatório per se como contradiz o princípio previsto na Constituição.

Naquilo que diz, JAM parece ainda defender mais leis. Como sempre, para um liberal, elas não são necessárias. O que temos são já leis a mais ou, neste caso, uma parte a mais na definição da relação jurídica do casamento. Basta o princípio da igualdade para garantir a todos o acesso ao casamento. Não é precisa nenhuma lei específica - e inerentemente paternalista e discriminatória para garantir a alguns cidadãos direitos parecidos perante a lei.

O que está em causa não é a questão prática (se tiverem as uniões de facto têm direitos (quase) iguais) é o princípio de igualdade. Não se podem excluir cidadãos do acesso a relações jurídicas com base em critérios arbitrários. Civilmente - sem as intervenções morais e religiosas de cada um, que nenhum liberal pode querer impor - é o mesmo que dizer que os loiros não podem celebrar contratos de arrendamento.