Idiossincrasia Empapada
Há certas alturas em que não estar em Portugal dá jeito. Como, por exemplo, quando morre o Papa mais mediático de sempre. Só de pensar nas lamechices que a TVI deve andar a passar, nos comentários cretinos na SIC sobre a ligação do Papa a Fátima e nas inanidades chorosas na RTP fico grato por estar longe. Mas, hélas, nem aqui se escapa a ficar completamente empapado com as televisões todas a servir "santo embalsamado aux larmes de peregrino" ao pequeno-almoço.
Aos peritos em "Vatican afairs" com previsões sobre o futuro Papa e certezas sobre o transplante ou não transplante do coração para Cracóvia, seguem-se os líderes judeus, muçulmanos e anglicanos num coro de unanimidade duvidosa. (Um líder muçulmano dizia ontem que esperava do novo papa que fizesse o que este, embora tivesse sido o melhor papa de sempre, nunca tinha feito e pedisse desculpa aos muçulmanos pelas Cruzadas. Deve estar para breve.)
Mas o mais curioso - para um ateu criado na Santa Madre Igreja e devidamente certificado e autenticado por baptismo, primeira comunhão, comunhão solene e crisma - é ver o Papa transformar-se na ideia de Papa. A ideia de Papa tem muito pouco a ver com o Papa lui-même, é a interpretação do Papa de acordo com as conveniências/convicções de cada um. Há aqueles que não gostam do Papa porque nunca disse a única coisa que os satisfaria num Papa - que Deus não existe (estou tentado a acreditar que é o caso de muita esquerda); aqueles que o odiavam por se recusar a fazer o que lhes parecia obrigatório e que limpam todo o resto da imagem (Não acha que este Papa teve um papel fundamental na queda do Comunismo? Não, porque ele era contra o preservativo. E a aproximação às outras igrejas? Isso só era relevante se eles se tivessem juntado todos para declarar que o casamento homossexual é sagrado.); e mais uma miríade de ideias do Papa. Ele é o Papa-Santo novo Cristo redentor que sofreu as agonias da doença com honra - presume-se que havia uma alternativa embora ninguém explique qual era - o Papa-D.Sebastião que salvou os polacos após 200 anos de humilhação, o Papa-Assassino responsável pela morte de milhares de pessoas com SIDA no Terceiro Mundo, espécie de Torquemada moral do Novo Milénio, o Papa-Cool anti-guerra no Iraque No Bush olé olé, o Papa-Machista anti-mulheres nos púlpitos, o Papa-Anti-Comunista, o Papa-Anti-Neoliberalismo, o Papa-Anti-Capitalismo ou o Papa-Globetrotter a correr o mundo para ver o povo. Enfim, um Papa que agradou à França.
Resta saber qual destes morreu, mas parece-me que quando enterrarem aquele corpo que está na Basílica, muitos destes Papas vão lá ficar porque não são João Paulo II, são a Igreja em si.
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