"Quid Rides? De te fabula narratur." Horácio.

quinta-feira, setembro 09, 2004

Farpa Génese

Fomos outr´ora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Comprehendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sahir d´ella. Ficamos exactamente em condições identicas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outr´ora uma multidão pittoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vae buscar alegremente, ao meio dia, cantando o Bemdito; é uma classe inteira que vive d´elle, de chapéo alto e paletot.
Este caldo é o Estado. Toda a nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames do lyceu a mocidade vê n´elle o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe ecclesiastica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desoccupada que quer viver á custa do Estado. A vida militar não é carreira; é uma ociosidade organisada por conta do Estado. Os proprietarios procuram viver á custa do Estado, vindo a ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria industria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A sciencia depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a industria ou para o commercio, esta situação perpetua-se de paes a filhos como uma fatalidade.


Eça de Queirós, As Farpas